sábado, 21 de novembro de 2015

Quarto Exercício – prática

O ultimo exercício proposto para as crianças foi uma produção de um curta através de um roteiro elaborado. Optei por começar com a criança mais velha, e expliquei para ela a história que iria interpretar. O enredo se tratava de uma menina com uma vida monótona, que fazia diversas atividades sozinha pois, como seria revelado posteriormente no curta, sua mãe (e única companhia) estava em estado terminal no hospital. A menina teria que rezar para Deus não ‘levar’ a sua mãe, porém o pedido não seria atendido e a mãe acabaria falecendo. O objetivo de todo o curta era explorar, através das diversas cenas, diferentes tipos de atuação, tais quais: o imóvel/inumano, a contenção de emoção, a naturalidade da fala decorada, a possibilidade da criança chorar por uma construção dela e não por um sentimento manipulado, dentre outras questões que serão discutidas a seguir. 
No início, assim como Doillon busca fazer em suas produções, tentei criar um distanciamento entre a criança e a personagem que ela interpretaria, porém ao contrário do cineasta em questão não houve um tempo significativo de trabalho para isso, e portanto para criar o distanciamento imediato pedi para que a criança fizesse a escolha do nome da personagem que iria interpretar. É importante que o nome da personagem principal não seja o mesmo que o da criança, pois pode gerar confusão para esta ultima sobre as situações vividas. Em Ponette, por exemplo, todas as crianças permanecem com o mesmo nome, com excessão de Victoire, que vive Ponette, para que justamente esse distanciamento seja criado. 
Milena escolheu o nome “Jade”, sendo assim toda a história foi explicada novamente para ela, agora tendo como principal objetivo fazer-la entender que quem viveria aquela história seria a “Jade” e não ela, e assim que a criança compreendeu do que se tratava o enredo decidimos dar início as gravações. 
Iniciamos com as cenas em que a criança em questão não poderia demonstrar nenhum tipo de emoção nas diversas situações cotidianas que iria passar. Foi pedido a garotinha em questão para que mantivesse o rosto imóvel, para que o espectador, ao ver o produto final, não tivesse consciência do sentimento da personagem naquele momento. 
A imobilidade é um conceito cinematográfico estudado principalmente por Robert Bresson [nota de rodapé 1] que buscava “criar” em suas produções uma espécie de relação entre a pintura e o cinema [nota de rodapé 2] onde o ator/modelo deveria manter uma pose estática do rosto não expressando assim o significado sentimental do personagem em cena. Para Bresson era mais poético o espectador tentar adivinhar a emoção por trás da máscara do personagem do que apenas “assistir” a entrega desses sentimentos. 
“Bresson acreditava realmente nessa possibilidade que o cinema tem de flagrar algo genuíno que esta além de qualquer tipo de interpretação. Sobre os modelos [atores], ele afirma o seguinte: “O importante não é o que eles me mostram, mas o que eles escondem de mim, e sobretudo o que eles não suspeitam que esta dentro deles”. [MOCARZEL Evaldo[nota de rodapé 3]
Para explorar a imobilidade de Milena foi pedido para que a criança desenvolvesse atividades as quais ela esta acostumada a fazer em seu dia-a-dia, tais quais: comer, jogar no celular, lavar a louça ou apenas sentar a observar o horizonte. Nessas situações a criança em questão manteve o rosto imóvel a não ser pelo piscar dos olhos, porem é perceptível, principalmente na cena ao observar o horizonte que algo se passa em seu olhar, criando assim a poética da cena, pois é inevitável o “querer descobrir” o que se passa através do olhar doce de uma criança que se mantém o tempo inteiro ‘séria’. 
Um dos momentos mais interessantes durante o exercício de imobilidade desenvolvido com a criança em questão é em uma determinada cena onde a menina joga pedras no rio. O seu corpo esta trabalhado para demonstrar a raiva e indignação e isso é perceptível pelos movimentos fortes realizados pela criança, porém em seu rosto, quando filmado de perto, nada se passa, não há ali traços raivosos e sim uma criança sem nenhuma expressão. A característica raiva que o espectador pode atribuir a cena, portanto, deriva do trabalho de corpo da criança e não do seu rosto imóvel, mantendo assim o mistério do sentimento real do personagem. 
A cena seguinte foi um experimento de introdução de falas previamente estabelecidas para que a criança desenvolvesse um trabalho de substituição de sentimentos, conceito defendido por Hagen, afim de dar veracidade a cena sem haver a manipulação do sentimento. Foi dado um texto, contendo uma conversa com Deus, para que a criança decorasse e depois de desenvolver esse trabalho, foi iniciado o processo de substituição.
Foi pedido para que a criança em questão lembrasse da situação mais triste que tinha vivido, para que lembrasse da perda de um ente querido, para que trouxesse de volta a cena todo os sentimentos que ela lembrava ter tido naquela determinada situação. Como diretora da cena, antes que a garotinha iniciasse sua fala, estimulei-a, de maneira indireta, para que as lembranças ficassem mais presentes. Não utilizei o conhecimento de situações que a deixariam ‘triste’, estimulei-a de forma com que ela chegasse nessas situações por vontade própria de fazer a cena, e não forçando-a a lembrar de uma situação que não quisesse. Um outro método utilizado para que essa substituição acontecesse foi o do “faz de conta” exercício desenvolvido no decorrer da pesquisa, o jogo foi usado para que, embora a criança tenha conhecimento que aquela situação esteja acontecendo com sua personagem, ela desenvolva um trabalho de substituição dos signos, onde imagina-se naquela mesma situação com alguém próximo a ela, trazendo o sentimento verdadeiro da criança para cena e não somente do personagem. Hagen acredita que essa transferencia de significado é importante pois permite ao ator de descobrir o verdadeiro sentimento de sua personagem, como afirma em: 
“Temos que fazer essa transferiria, essa descoberta do personagem dentro de nós, por uma serie contínua e sobreposta de substituições, a partir de nossas próprias experiências e lembranças, pelo uso da extensão imaginativa das realidade, e colocá-las no lugar da ficção da peça. [HAGEN, 2013, p. 51-21]
Esse jogo de faz de conta, assim como a lembrança de uma situação parecida que viveu  (técnica também defendida por Stanislavski através do conceito da situação paralela) é importante para a naturalidade e veracidade da cena pois traz consigo verdades reais vividas pelo ator. O trabalho da voz de direção em cenas desse tipo é igualmente importante, pois provoca e instiga o ator a desenvolver um trabalho de imaginação mais eficaz. Hagen relata um caso em que a voz de direção se fez presente de forma eficaz ao ajudar a atriz de Moças de Uniforme a chegar a emoção pretendida pelo personagem através da substituição. 
“Manuela deve reagir com profunda vergonha e humilhação. A atriz não conseguia tornar esse momento significativo. Nem a roupa nem a atriz no papel da professora pareciam importar muito para ela. Por acaso, eu lhe sugeri uma estimulante substituição para a professora e a camisa. Eu disse: “E se Lynn Fontainne tivesse nas mãos calcinhas manchadas e as mostrasse a você?” A atriz ficou vermelha como pimentão arrancou a camisa das mãos de Fraulein Von Bernberg e a escondeu freneticamente atrás de si” [HAGEN, 2013, p.52).
No caso de Milena os estímulos oferecidos e a substituição realizada por ela mesma funcionaram. Foi perceptível a carga de emoção que a pequena atriz buscava conter e demonstrar ao mesmo tempo. O texto foi falado em meio a respirações de contenção do choro o que deu um aspecto mais ‘cotidiano’ a cena através das sujeiras na voz e nas expressões da criança. 
A cena final do curta desenvolvido trata-se da criança sentada no local onde a mãe fora enterrada, deixando para ela um “presente” significativo. Nessa cena foi utilizado como principal estimulo a ambientação, onde a criança, por estar em um cemitério real pode viver a cena como personagem de uma forma mais intensa e verdadeira. Foi pedido para que novamente a menina mantivesse seu rosto imóvel porém, desta vez, era perceptível seu sentimento através do olhar. Ainda que nenhum músculo de seu rosto se mexesse inicialmente, o olhos repletos de lágrimas que se recusavam a cair trouxe um significado poético a cena em questão. 
Durante a preparação da cena a garotinha pediu um tempo para conter o que estava sentindo afim de conseguir a imobilidade que fora pedido a ela, e com a câmera ainda rodando foi lhe permitido ter esse “tempo”. A emoção que ela tenta conter é tão genuína e bonita, e gera um quebra a imobilidade proposta de forma tão sutil que mante-la na edição final foi quase uma obrigação. É importante deixar com que as crianças sejam elas mesmo em cena, ainda que tenha uma marcação meticulosa. 
O curta termina com a garotinha deixando um pequeno urso sob a tumba da mãe e se retirando do cemitério. A entrega da menina a cena foi um aspecto interessante de se ver, pois esta ultima acredita muito em superstições relacionada ao ambiente em que a cena foi gravada, tanto que antes de começar a gravação a garotinha relatou que não iria mais querer aquele urso depois da cena, porém nenhum desses aspectos é perceptível quando a menina esta em cena, e isso demonstra que ela conseguiu “vencer” um pequeno medo dentro dela para construir a sua personagem de forma eficiente, conseguindo separar assim a personalidade do ator da do personagem, ainda que tenha utilizado dos sentimentos reais do ator para chegar ao sentimento correto de sua personagem. 
O segunda curta desenvolvido foi com Bernardo que acabara de completar seis anos durante o processo. A cena escolhida para o garotinho interpretar havia um cunho de suspense e por isso explicar a história para que fosse perfeitamente entendida em um curto período de tempo foi um pouco complicado, assim como desenvolver o processo com a fala que se enquadra na poética cinematográfica, visto que a fala do garotinho em questão é um tanto quanto artificial. 
Houve uma tentativa de repetição do método da escolha do nome do personagem como forma de distanciamento entre personagem e ator, porém a aceitação não foi eficaz como no caso anterior, sendo assim o distanciamento teve que ser feito de outra forma. Foi utilizado então a voz de direção como método para afirmar que as situações que a criança em questão iria viver não eram verdadeiras. Nessa situação o nome do ator foi mantido para o personagem pois como não se tratava de sentimentos profundos não havia a necessidade a separação total do “dois corpos” e a criança respondia melhor ao nome próprio do que a um inventado pela mesma. 
A história foi gravada, assim como propõe Doillon e Spielberg em ordem cronológica, para que estivesse claro para o garotinho todas as etapas da história, mantendo-o assim sempre ciente do que estava acontecendo com seu personagem. 
Iniciamos com uma cena que faz parte das atividades cotidianas do menino, brincar com uma bola no campo de casa. Pedi para que ele brincasse normalmente, e só chutasse a bola para o local indicado depois de um tempo brincando e em seguisse corresse para busca-la, parando em frente a uma marcação onde ele iniciaria a conversa com o “ser imaginário” que daria contexto a cena. 
Foi pedido ao garoto que ele imaginasse esse amigo, e que olhasse para o local marcado como se realmente tivesse enxergando “alguém ali” e acredito que este estimulo tenha ajudado-o a manter o olhar fixo em um ponto conversando sempre na mesma direção inicial, mantendo a ideia de que um ser estaria presente naquele local, embora a câmera mostre que não há ninguém. 
Uma das partes mais complicadas durante o processo foi a verbalização das falas. A criança em questão ainda esta na fase de desenvolvimento linguistico explicado por Piaget na segunda fase de desenvolvimento chamada de pré-operatório e por isso a fala ainda é um obstáculo para ela, ainda que domine as palavras, quando incitada a falar algo decorado, a criança não consegue produzir “sujeiras” naturais na verbalização mantendo a fala correta o tempo inteiro demonstrando a mecanicidade da fala decorada. Para tentar amenizar essa forma mecânica de verbalização, através da voz de direção foi dado ao garoto um pouco antes de cada fala a entonação e a forma de falar que era desejada para que o menino apenas imitasse, ainda olhando para o seu “amigo imaginario”, as falas que lhe eram dadas na hora. O método funcionou de forma convincente, ainda que a articulação das palavras tenha sido uma dificuldade para o garotinho. Durante a gravação também foi dado a criança um retorno da atuação dela, encorajando-a a entrar cada vez mais no personagem proposto. 
As marcações de cenas, na questão mobilidade, não foi um problema relevante. A criança entendia perfeitamente os gestos e lugares os quais ela deferia fazer ou ir, e isso facilitou o processo.
A segunda cena que vale a pena ser destacada retrata a situação da escrita com uma criança que acabara de completar seis anos e ainda não tem domínio completo da alfabetização. O estimulo para que a cena acontecesse foi ditar a “lista” de coisas que o amigo imaginário estava propondo para essa criança fazer, e fazer com que a criança tirasse suas duvidas em relação a escrita com o personagem que estava imaginando e não com o diretor. Durante o ditado surgiram varias duvidas em relação ao espaço entre as palavras e de como escreve-las, porém o que mais chama atenção na cena é a concentração da criança ao desenvolver a ação. O olhar fixo no papel, o rosto sério em sinal de atenção, a calma para desenhar as letras, todos esses aspectos traz a verdade do ator em cena e não somente do personagem. Ajudar as crianças a explorar tais verdades através de suas próprias dificuldades tornam a cena mais ricas e verdadeiras. 
A única fala roteirizada dessa cena tratava-se de um “tem certeza?!” após o garoto perceber o perigo que a lista trazia para ele. A fala deveria ser direcionada para esse ser imaginário que se encontrava no “ar” e o interessante durante a cena em questão é que o garotinho, pela dificuldade na escrita, demora um certo tempo para decifrar primeiro a escrita e depois o significado da palavra “pular”, fazendo com que a frase “tem certeza?” soe natural por finalmente estar entendendo o que o imaginário dele esta propondo. 
A maior dificuldade durante o processo com o garotinho de seis anos foi em questão do tempo das falas e das ações. Por ser algo roteirizado o tempo em que ele desenvolvia as ações e falava o que era pedido era sempre muito rápido, ainda que a calma fosse pedida. A situação onde essa relação com o tempo é muito perceptível é na cena em que o garotinho, após cair da árvore alta, pergunta ao amigo imaginário se ele esta vindo busca-lo e em seguida morre. Bernardo conseguiu encarar a câmera (como era a proposta) por longos minutos sem falar nada, porém assim que a fala era pronunciada e o personagem deveria morrer, suas ações corriam tirando assim a naturalidade da cena. Esse é um fator importante a ser trabalhado, pois é ritmo e tempo da cena é importante para a credibilidade do curta. 

Tendo trabalhado algumas dessas ações com essa crianças participantes do projeto foi notável a evolução de cada uma delas no quesito atuação e construção de personagem/situação, e portanto perceptível que uma criança pode de fato conseguir interpretar um papel sem ser manipulada pelo diretor. 

[nota de rodapé 1]  Bresson foi um cineasta francês, um dos maiores do séc XX e um grande mestre do movimento minimalista.
[nota de rodapé 2]  A  imobilidade não era a única relação entre o cinema e a pintura que o cineasta buscava. Ele explorava também a claridade em contraponto com a escuridão, o afastamento em relação a aproximação, assim como a forma e a posição, dentre outros opostos.
[nota de rodapé 3]  MOCARZEL, Evaldo. Posfácio in BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. Tradução Evaldo Mocarzel e Brigitte Riberolle. São Paulo: Iluminuras LTDA. 2005. pag 118. 

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