sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Terceiro exercício – Prática

A terceira experiência realizada com as crianças envolvidas no projeto foi uma atividade de “faz de conta” diante a câmera. Foram descritas algumas situações em que emoções conhecidas por elas seriam abordadas, para identificar assim o conhecimento dessas crianças sobre o seus sentimentos e a capacidade de transpor o que esta interiorizado para a câmera assim como analisar se a idade da criança posta em observação, interfere nessa exteriorização de sentimentos, visto que, segundo Piaget [nota de rodapé 1], a idade da criança interfere na sua visão de mundo e consequentemente em sua maneira de lidar com ele. 
Piaget elaborou sua pesquisa observando metodicamente crianças, identificando assim em que fase (ou idade) da vida essas crianças apresentariam percepções de espaço, tempo, linguagem, símbolo, lógica, movimento, dentre outras percepções que constituem o ser humano. Ao concluir a pesquisa, Piaget dividiu em quatro os estágios possíveis de desenvolvimento da criança, sendo eles: sensório-motor que abrange crianças de 0 a 2 anos com percepções sensoriais e motoras básicas, onde buscam conhecer seus sentidos e a capacidade de movimento de seus corpos de forma limitada através de reflexos como por exemplo o ato do bebê “mamar” ou ainda o de pegar um objeto e leva-lo diretamente a boca. O segundo estágio descrito pelo autor é o pré-operatório que agrega crianças de 2 a sete anos que é também conhecido como fase da inteligência simbólica onde a criança possui a capacidade de interiorizar os esquemas de ações que adquiriram no estágio anterior, assim como é destacado como período em que a criança desenvolve sua capacidade linguistica, nessa idade a criança, segundo Piaget, é egocêntrica, acredita que tudo deve ter uma explicação e deixa-se levar pela aparência, sem conseguir relacionar os fatores de uma situação. É nessa fase que Bernardo, uma das crianças do experimento, se encontra.
A terceira fase descrita pelo autor é a que crianças de 7 a 11 anos se encontram, chamada de operatório-concreta onde adquirem noção de tempo, espaço, velocidade, ordem, dentre outras capacidade que os permite relacionar diferentes aspectos da realidade. É nessa idade que a criança adquire a lógica matemática e tem uma percepção maior do meio em que se encontra e portando de si mesma. Milena e Gabriela, duas crianças do projeto, também se encontram nessa fase. 
A fase operatório-formal é a ultima descrita pelo autor. Ela engloba indivíduos dos 12 anos em diante e descreve as suas capacidade como abstração total do meio e das habilidades, sendo assim possível para o indivíduo pensar em relações lógicas e buscar soluções através de hipóteses e não somente pela observação da realidade, aplicando assim seu raciocínio lógico em todas as classes de problemas. 
O experimento realizado com as crianças do projeto, portanto, se baseou em entender a exteriorização de seus sentimento, assim como o jeito de lidar com as situações levando em consideração a idade que se encontram visto que, segundo Doillon a criança reconhece os sentimento a partir dos quatro anos e portanto é a partir dessa idade que o indivíduo está apito para lidar com esses sentimentos em cena visto que 
“Jouer, c’est quoi? C’est exprimer des sentiments, pour simplifier beaucoup. On ne peut pas jouer si on ne comprend pas les sentiments qu’on joue, en simplifient encore extraordinairement. Est-ce qu’un enfant de quatre ans comme Victoire [nota de rodapé 2] ne connaît pas ces sentiments que sont l’amour, la jalousie, la haine, la possession, l’abandon? A l’évidence, oui”  [Jacques Doillon, entretien avec l’auteur, filmado em Paris em 3 de fevereiro de 2005] [nota de rodapé 3]
Começando o experimento, Milena (10) foi colocada em um lugar tranquilo e de pouco movimento, a atividade foi explicada e iniciou-se a filmagem. A primeira situação proposta para a criança em questão foi “Faz de conta que você acabou de ganhar alguma coisa que você queria há muito tempo”, para essa situação foi utilizada a técnica de significados de objetos, onde entrega-se a criança um objeto diferente e pede-se que ela dê a ele o significado que ela quiser, transformando por exemplo, um chinelo em um tablet. Essa técnica é muito utilizado em brincadeiras infantis, onde a criança tem consciência da realidade mas consegue ‘visualizar’ nitidamente um significado diferente para o objeto em questão através do uso de sua imaginação como relata Wallon ao dizer que “c’est agir comme si l’imaginaire était réel”[nota de rodapé 4]. Para Milena foi dado um chinelo, o significado ao objeto seria pensado por ela, e pedido uma reação ao receber o tão esperado presente. 
A criança em questão manteve o tempo o olhar sobre o objeto, dado a ele um sentido diferente do que estava realmente em mãos, e era notório em sua expressão que o que ela enxergava ali ela um “tablet” e não um chinelo comum. No término da situação a menina largou o chinelo voltando ao seu significado real, esquecendo que há poucos segundos aquele era o eletrônico que ela queria que fosse, provando assim que a criança tem noção do mundo imaginário e do real, por mais que elas acreditem nas situações imaginarias que criam. 
Na segunda situação a criança deveria fazer de conta que estava com ciúmes de alguém e foi especificado que no exercício não havia a obrigatoriedade de falas, que o objetivo era a captura da emoção, sendo ela transmitidas por falas ou somente por expressões. É importante relatar nesse ponto que foi dado a criança a total liberdade de se expressar da forma que achasse que deveria na situação proposta, pois como afirma Truffaut [nota de rodapé 5]e concordam Spielberg e Doillon, a criança artista é o indivíduo que é ele mesmo em cena, e por isso o cineasta deve escolher especificamente uma criança que se enquadra no papel do personagem e dar a ela somente a situação (ou diálogos curtos) para que interpretem com suas palavras de forma mais natural.
“A l’intérieur des scènes, je leur donnais très peu de dialogue: je leur disais en general les idées, et eux faisait le reste avec leurs propres mots. (..) Par exemple, dans la scène ou l’instituteur arrive en disant: “J’ai eu un enfant”, ils ont posé exactement les question qu’ils voulaient.” [TRUFFAUT, François. Citado por GILLAIN, Anne. Le Cinéma selon François Truffaut. Flammarion. Paris (1992). pag. 347] [nota de rodapé 6] 
Sendo assim, a criança em questão preferiu para essa situação proposta não usar falas, e transmitiu o sentimento proposto através de expressões que para ela retratava o fator ciúmes. Durante o exercício o olhar dela vagou do chão para um ponto fixo, fazendo possível notar que algo passava dentro da cabeça dela, talvez dando suporte para que sua expressão de ciúmes fosse tão convincente. 
Em seguida foi proposta a situação de “faz de conta que alguém que você ama muito sofreu um acidente”. A garota em questão não sabia exatamente como agir, a primeira reação dela foi colocar a mão no rosto em sinal de susto e em seguida começou a rir, não interiorizando a situação proposta, seguindo com o mesmo take a menina ainda colocou a mão no peito e começou a respirar pesadamente explodindo em risadas em seguida porque esses primeiros reflexos miméticos, segundo Stanislavski, são os primeiros gestos que o indivíduo tende a fazer em determinadas situações. 
“On montre les dents et on roule le blanc des yeux pour exprimer la jalousie, on couvre ses yeux et son visage au lieue pleurer, on s’arrache les cheveux pour montrer son désespoir (…)  L’histoire de deux petite fille qui n’avaient jamais vu de theatre, pas plus que de répétitions, et cependant jouèrent une tragédie avec les cliches les plus vulgaires et les plus rebattus” [STANISLAVSKI, Constantin. La formation de l’acteur. Paris, Payot et Rivages. coll Petite Bibliothèque. 2001. trad do inglês por JANVIER Elisabeth. pag 40-44.] [nota de rodapé 7] 
Visto que a criança estava apelando para o clichê parei de filmar, o objetivo era demonstrar emoções verdadeiras e como não estava sendo atingindo acreditei que uma conversa com a criança a faria entender melhor o objetivo. Expliquei a importância de realmente sentir o que ela estava imaginando, e expus a possibilidade dela lembrar situações em que os sentimentos fossem parecidos para trazer mais verdade a sua interpretação, emprestando assim suas próprias experiências para a sua personagem como propõe Stanislavski. [nota de rodapé 8] 
A criança em questão perdeu o avô recentemente e portanto esse foi o ‘gatilho’ utilizado por ela para expressar a forma que se sentiria se ‘alguém’ que gosta muito sofresse um acidente. Instantaneamente no “gravando” a menina começou a chorar, substituindo o ‘avô’ pelo ‘cachorro’ e era visível a verdade das suas palavras e da sua emoção. É perceptível que durante a cena ela tenta conter as lágrimas algumas vezes, mas essas ultimas insistem em cair. Acredito que o método do “reviver um sentimento” seja, para criança, menos traumático que o método de manipulação utilizados por alguns cineasta como por exemplo retirar um objeto que gostam afim de faze-los chorar, ou em casos mais extremos mentir sobre acidentes com a família para que a criança consiga atingir a emoção desejada, como aconteceu nas filmagens de Little Miss Marker com Shirley Temple quando a garotinha não conseguia chorar em cena.
“[…]La jeune femme change des jeunes vedettes du studio s'aproche de Shirley et lui dit: “Tu sais, je suis désolée, mais ta maman vient d’avoir un accident de voiture; elle n’a rien eu, mais elle a dû se rendre au poste de police pour faire une déposition”. La fillette un peu troublée, fronce les sourcils, mais les larmes tant attendues ne coulent toujours pas. Alors la jeune femme ajoute, avec un peu d’impatience: “Comment, Shirley, tu n’es pas triste pour ta pauvre maman. Elle aimerait tant être ici avec toi!” Á ces mots, la petite fille fond en larmes et l’on entend alors, avec un virulent moteur, un immense soupir de soulagement.” [SIMPSON, Marie-Jo. Les Kiddies d’Hollywood in La revue du cinéma nº 394, maio 1984. pag 78-80] [nota de rodapé 9]
Acredito que, ao utilizar o método de “reviver um sentimento” seja mais saudável para criança do que criar situações em que seus sentimentos sejam manipulados por mentiras que podem afeta-las de forma grave emocionalmente.
Dando sequencia ao exercício, pela experiência anterior de “emprestar suas experiências” ao personagens a menina entendeu a necessidade de relacionar algo de sua vida a ação que eu estava propondo e assim seguiu com o “faz de conta que esta com raiva de alguém” “faz de conta que te botaram de castigo” e por fim, “faz de conta que você esqueceu de fazer o dever de casa e a professora vai ver agora”.  Nessa ultima questão em especial, a garotinha ligou com um fato ocorrido no dia da gravação, em que ela deveria apresentar um teatro na sua igreja mas esquecera as falas durante a apresentação e por tanto a reação, segundo a criança, seria parecida a de “esquecer de fazer o dever de casa”. O resultado de grande parte das cenas foi satisfatório, nos fazendo compreender que a criança que se enquadra no estágio descrito por Piaget como operatório-concreto tem a capacidade de exteriorizar seus sentimentos com facilidade, visto que sua visão sobre si mesmo esta em constante ampliação durante esse estágio.
A segunda criança a fazer parte do experimento foi Bernardo (5) e as ações propostas foram exatamente as mesmas citadas anteriormente. Gostaria de identificar na proposta com essa determinada criança, se a idade influência na forma de relacionar as ações e de expor o que se esta sentindo, como determina Piaget em suas obras, razão pela qual optei abordar as mesmas situações. 
Assim como fiz com Milena, pedi a Bernardo que sentasse em um lugar calmo e comecei a filma-lo na ação “faz de conta que ganhou algo que queria muito” e de primeira foi difícil faze-lo entender como a brincadeira funcionava. Por mais que entendesse o conceito, externalizar o que estava em sua cabeça era uma ação complicada pra ele. O garotinho continuava a repetir “obrigada mamãe, por esse brinquedo lindo” mas não era possível ver, em sua expressão, o sentimento que ele buscava externalizar. Esse aspecto me intrigou, visto que, segundo Piaget, Bernardo estaria na fase de desenvolvimento do estágio pré-operatório e portanto fazer uso da imaginação deveria ser uma tarefa quase que instantânea visto que esta no estágio do “jogo simbólico”[nota de rodapé 10]
Seguindo para a segunda ação “faz de conta que esta com ciúmes de alguém” pude observar um segundo problema na criança em questão: o fato de não conseguir segurar o diálogo com ela mesmo por muito tempo. A ação “ciúme” foi um pouco mais externalizada do que a anterior, porém com os clichês grotescos como citado anteriormente, o garotinho cruzou os braços e franziu as sobrancelhas em sinal de desaprovação mas logo desmontou o personagem construído para perguntar qual seria a próxima ação. Insisti um pouco mais com ele, assim como fiz com a criança anterior, pedi para que lembrasse de uma situação em que ele tinha tido muito ciúmes e ele me relatou que no dia anterior a irmã dele tinha sido levada para passear e ele não, e por isso ele tinha ficado com ciúmes. Pedi para que usasse essa situação em particular para tentar fazê-lo segurar um pouco mais a cena e de fato funcionou. Fazer com que a criança se lembre de uma emoção já vivida faz com que o trabalho de fazê-la “interpretar” o personagem que queremos se torna mais fácil, pois como Doillon [nota de rodapé 11]afirma, a criança não pode interpretar aquilo que ela não conhece. 
Na terceira situação “faz de conta que você brigou com alguém” a criança em questão se recusou a continuar a atividade e portanto foi dado um tempo a ela, para que pudesse assimilar as ações propostas antes de tentar novamente filma-la. Depois de um tempo o garotinho voltou, e se propôs a refazer todas as ações de formas corretas. Assim como Truffaut relata e Doillon e Spielberg concordam, deixei com que a criança fosse ela mesma em cena, inclusive permiti que continuasse a chupar as balas que ele havia trazido, pois esse aspecto poderia servir como desvio do foco de atenção [nota de rodapé 12]para ele, mesmo que inconscientemente, tendo assim um aspecto do cotidiano na encenação que o garoto estaria preste a fazer. 
Reiniciamos a experiência com a criança em questão, agora mais calmo e com uma distração de seu cotidiano, o garotinho conseguiu se concentrar melhor e realizar os exercícios sem demais problemas.
Na primeira situação (receber um objeto que queira muito), ele compreendeu, nesse estágio, que poderia dar o significado que quisesse ao “objeto” que eu estava entregando a ele, e a folha de uma árvore também virou um tablet na imaginação da criança, porem a visualização do objeto não foi tão convincente quanto a da criança maior, o que me surpreendeu. Apesar de falar e expressar-se da forma que ele achava que deveria, era visível que o objeto na mão dele não havia se transformado no eletrônico, por mais que ele afirmasse isso em suas palavras. 
Seguimos o jogo com com a situação do ciúmes e dessa vez o garotinho se entregou a cena, acredito que tenha visualizado situações em que sentiu ciúmes da irmã pois esse foi o ponto forte abordado por ele. Gostei da interação dele com o fato de estar mastigando, ele dava algumas pausas para que conseguisse engolir o que havia na boca e essas pausas tornaram a cena mais real, concreta e consistente. A distração funcionou bem para ele e o manteve concentrado durante a atividade. 
A situação proposta em seguida foi “faz de conta que alguém que você ama muito sofreu um acidente” e a ação da criança me deixou intrigada, de certa forma. Assim como a criança anterior o garotinho em questão perdeu o avô a pouco tempo, mas não foi pedido a ele que usasse esse fato para externalizar o sentimento dessa cena, o fato dele usar voluntariamente me deixou surpresa. O garotinho pegou uma folha do chão e começou a despedaça-la enquanto mastigava e pensava , em longos segundos, como reagiria a situação proposta. A reação dele foi totalmente oposta a da menina mais velha, e tal ação me fez questionar como crianças mais novas falam tão naturalmente sobre a morte e os sentimentos delas são quase que imperceptíveis, embora saibamos que existem. O menino relatou a morte do avô e enfatizou o fato de estar triste, porém a sua expressão não demonstrava nada, seu rosto era neutro contando a história e a movimentação maior vinha da folha sendo despedaçada em suas mãos. O seu tom era mais nostálgico e neutro do que emotivo. Wallon, um antecessor a Piaget que buscava igualmente estabelecer estágios no desenvolvimento da criança, relata que:
“La passion peux être vive et profonde chez l’enfant. Mais avec elle apparait le pouvoir de rendre l’émotion silencieuse. Elle suppose donc, pour se developper, le controle de la personne sur elle même (…), dont la conscience ne se produit pas avant trois ans. Alors l’enfant devient capable de mûrir secrètement de frénétiques jalousies (…)” [WALLON, Henri. L’evolution psychologique de l’enfant. Paris. Armand Colin, coll. Prisma Éducation, 1994. p. 128.] [nota de rodapé 13]
Sendo assim é compreensível o fato do garotinho não querer externalizar seus sentimentos em relação ao avô. Talvez seja mais benéfico para ele guardar o que sentiu pra sí só e como o objetivo do exercício era ver como eles reagiriam nesse “faz de conta” decidi prosseguir o exercício tendo como resultado essa expressão neutra e de certa forma fria da criança em questão. Acredito que grande parte das crianças artistas mantenham sentimentos fortes dentro delas nessa idade, e que o significado do que ela “deveria estar sentindo” é manipulado na edição de imagem. 
A quarta situação foi “estar com raiva de alguém” e a situação ficou cômica. O garotinho observado decidiu se utilizar de signos que para ele significa raiva como o fato de “bater em alguém”, ao explorar esse signo o menino mostrou os pequenos músculos para câmera, fingiu dar socos em sua mão e franziu a sobrancelha por diversas vezes em sinal do descontentamento. A utilização de signos de crianças dessa idade facilitam a compreensão delas acerca do seu sentimento e da forma que deve representar e exterioriza-los. A imaginação da criança nessa situação também é algo a se destacar. Nas outras situações o garotinho se contentava em dizer algumas falas, já nessa ação o fato de estar brigando com alguém levo-o a imaginar cenários inteiros a ponto de mencionar “vou bater nele e a policia vai vir me buscar depois mas não vão me prender porque eu tenho tatuagens de força” sabendo que isso não aconteceria em um cenário real.  
Em seguida foi dado a ação do “faz de conta que te botaram de castigo” e o garotinho mais uma vez, mesmo que inconscientemente, fez uso da divisão do foco de atenção. Ele tirou o papel da bala calmamente e com igual calma colocou o doce na boca, começando a mastigar enquanto pensava no que iria fazer. O olhar dela já tinha significado para a ação e portanto a percepção inconsciente acerca da divisão do foco foi interessante e trouxe um significado a mais a cena que o garotinho interpretava. O menino optou por dar sequência ao cenário criado anteriormente onde a policia viria prender ele, a ideia dela era que o ‘castigo’ viesse a ser dado pelos policiais. O pensamento de Bernardo prova mais uma vez a teoria piagetiana acerca dos estágios de vida de uma criança, onde um indivíduo que se encontra no estágio pré-operatório precisa de uma continuidade narrativa para entender o que esta acontecendo, pois não possui plena noção de tempo e espaço, como afirma Wallon em 
“Il est inexact de dire que l’enfant se maintient dans un perpétuel présent. C’est plutôt le “maintenant” qu'il l’accapare, c’est-a-dire une prise de possession graduelle des instants que mesurent sa perception et son action. Il a le sentiment simultanée de actuel et du transitif.” [WALLON, Henri. L’evolution psychologique de l’enfant. Paris. Armand Colin, coll. Prisma Éducation, 1994. p. 178.] [nota de rodapé 14]
Sendo assim é importante manter uma linha cronológica para que a criança possa entender o que esta “acontecendo”. Por esse motivo tanto Spielberg quanto Doillon, ao trabalhar com atores crianças, fazem as filmagens em ordem cronológica correta fato esse muito incomum no cinema como afirma Nicolas Livencchi[nota de rodapé 15]
Acredito que tenha sido por este motivo que Bernardo sentiu a necessidade de continuar a cena anterior mudando somente o sentimento e a situação.

[nota de rodapé 1] Durante sua vida (1896-1980) Jean Piaget desenvolveu três obras principais que falam o desenvolvimento da criança, sendo elas Le jugement moral chez l’enfant, La naissance de l’intelligence chez l’enfant e La construction du réel chez l’enfant. Vide referências. 
[nota de rodapé 2]  O cineasta refere-se a Victoire Trivisol, a pequena atriz de quatro anos protagonista do filme Ponette dirigido por ele em 1996. No filme a criança expõe, de maneira convincente, uma série de sentimentos que a personagem, ao perder a mãe e ser abandonada pelo pai, sente.
[nota de rodapé 3] “Atuar é o que? É expressar seus sentimento, para simplificar. Não podemos atuar se não compreendemos os sentimentos que devemos interpretar, simplificando ainda mais. E uma criança de quatro anos como Victoire não conhece seus sentimentos que são o amor, o ciúme, a raiva, a possessão, o abandono? É evidente que sim” – tradução por mim
[nota de rodapé 4]  “É agir como se o imaginário fosse real” – tradução por mim [WALLON, Henri. L’evolution psychologique de l’enfant. Paris. Armand Colin, coll. Prisma Éducation, 1994. p. 69.
[nota de rodapé 5]  TRUFFAUT, François. Citado por GILLAIN, Anne. Le Cinéma selon François Truffaut. Flammarion. Paris (1992). pag. 347
[nota de rodapé 6]  “Nas cenas eu dava a eles muito pouco diálogos: eu dizia em geral as ideias e eles faziam o resto com as próprias palavras (…) por exemplo, na cena em que o professor chega dizendo “Eu tive um filho” eles questionaram exatamente as perguntas que queriam” – Tradução por mim. 
[nota de rodapé 7]  “Nos mostramos os dente e rolamos os olhos para expressar o ciúmes, cobrimos os olhos e o rosto ao invés de chorar, nós arrancamos o cabelo para mostrar o desespero (…) A historia de duas garotinhas que nunca foram ao teatro, viram nada mais que alguns ensaios, e mesmo assim são capazes de interpretar uma tragédia com os clichês mais vulgares e mais batidos. – tradução por mim.
[nota de rodapé 8]  STANISLAVSKI Constantin. La construction du personage. Paris. Pygmalion/Gérad Watelet. 1984. Traduzido por ANTONETTI, Charles.
[nota de rodapé 9]  “[…] a jovem responsável pelos jovens atores se aproxima de Shirley e lhe diz: “Você sabe, eu sinto muito, mas sua mãe acabou de sofrer um acidente de carro, ela não teve nada, mas ela teve que ir na polícia para dar um depoimento.” A garotinha, um pouco desconcertada, franziu a sobrancelha mas as lágrimas tão esperadas ainda não rolavam. Então a jovem com um pouco de impaciência acrescentou: “E então, Shirley, você não esta triste pela sua pobre mãe?. Ela queria tanto estar aqui com você!”. Com essas palavras a garotinha caiu em lágrimas e foi possível escutar então, (…) um imenso suspiro de alívio” (por parte dos cineastas) – tradução por mim.
[nota de rodapé 10]  Consiste na capacidade da criança em criar imagens mentais desenvolvendo fantasias, brincadeiras tendo consciência porém de que o que se passa na cabeça dela não é real.
[nota de rodapé 11]  Ibird
[nota de rodapé 12]  ainda não sei o que citar pra explicar
[nota de rodapé 13]  “A paixão pode esta viva e profunda na criança. Mas com ela aparece o poder de render a emoção silenciosa. Para se desenvolver, ela [a emoção] supostamente precisa do controle da pessoa sobre ela mesmo (…) Então a consciência não se produz antes dos três anos. Depois disso a criança tem a capacidade de amadurecer secretamente seus sentimentos de ciúmes (…)" – tradução por mim.
[nota de rodapé 14]  “É inexato dizer que a criança se mantém em um perpetuo presente. É mais o “agora” que a monopoliza, quer dizer, uma tomada de percepção gradual de instantes que mede sua percepção e suas ações. Eles tem sentimentos simultâneos do atual e do transitivo.” – tradução por mim.
[nota de rodapé 15]  [LIVENCCHI, Nicolas. L’enfant Acteur: De François Truffaut a Steven Spielberg et Jacques Doillon. Paris, 2012. Pag 131.]

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Segundo exercício – Prática

No segundo exercício pedido para que as crianças realizassem, se tratava de uma cena falada. Foi dado a cada uma delas uma situação base e pedido que improvisassem, de acordo com a sua imaginação, a continuidade dessas cenas. O objetivo principal do exercício era ver, de acordo com a idade e situação social da criança, qual seria a continuação que ela daria para o que foi proposto, afim de verificar a naturalidade diante as câmeras ao improvisar algo falado. É necessário, quando se faz cinema com criança, que esta ultima esteja ‘a vontade com a câmera’ (se a proposta não for o desconforto) e portanto pedir para que ela mesma crie um monologo diante as câmeras é uma forma de ver a adaptabilidade e naturalidade que criança tem para com o objeto que a observa. 
A primeira a realizar a atividade foi Milena (10 anos) e a situação dada a ela foi uma conversa com Deus. Foi deixado livre o contexto da conversa, não impus a ela um assunto a ser conversado, muito menos a forma desejada, deixei que ela interpretasse a “conversa” da forma que sua imaginação e vivência permitia e assim ela o fez. A escolha do ambiente também foi feita pela criança, acredito que nesse primeiro momento do experimento seja importante o fato da pequena atriz se sentir ‘a vontade’. Milena escolheu um lugar significativo para ela, o quarto em que seu avó, que falecera há pouco tempo, dormia, e que agora era dela. Acredito que tenha sido uma forma de se sentir mais próxima de Deus, por ter alguém tão próxima a ela (segundo suas crenças religiosas) perto a ele. 
O primeiro take gravado, tendo em vista a forma livre de interpretação da ação, a criança em questão fez através de murmúrios. Sentou-se na cama, cruzou as pernas, juntou as mãos em sinal de oração, fechou os olhos e começou a murmurar suas preces. Durante esse pouco tempo de cena pude observar como as crianças se espelham em ações adultas e em movimentos clichês que se tornam imperceptíveis em suas visões, assimilando assim, mesmo que inconscientemente, esses gestos clichês a ações do dia-a-dia. O ato de juntar as mãos e fechar os olhos em sinal de “prece” nos demonstra como esses gestos que se tornam mecânicos fazem parte de uma forte representatividade que nos leva diretamente a entender a ação que se esta praticando, acredito que isso seja uma das características no cinema na infância. Para se convencer e convencer o espectador de algo, a criança faz uso de gestos cotidianos e simples, de fácil compreendimento e forte significado. 
O objetivo do jogo, nesse exercício, era o uso da fala em frente as câmera, e portanto, apesar da criança obedecer a ação proposta, os murmúrios não se enquadravam na regra de utilizar a fala, e portanto a gravação foi parada. Pedi a ela para que no take seguinte ela conversasse com Deus em voz alta, e assim ela o fez, utilizando da mesma gestualidade da cena anterior. Após agradecer e pedir a Deus o que ela acreditava que se enquadrava no contexto da ação, ela parou a cena e ‘desconstruiu’ toda a postura que ela havia proposto para a sua ação, dando assim um final rápido para a cena em questão, e não tão satisfatório, devido ao pouco tempo utilizado. Acredito que o fato de estar sendo filmada em um momento que geralmente é íntimo, a tenha incomodado um pouco, e esse é um aspectos pelo qual se deve ter cuidado ao filmar uma criança. Segundo François Dolto [nota de rodapé1], em sua obra La Cause dês Enfants de 1995 a câmera pode servir como um instrumento de violação na vida tanto do adulto, quanto a da criança, visto que grande parte de suas ações são intimas e portanto filma-las deve ser feito com delicadeza e cuidado visto que a criança, ainda segundo Dolto, não compreende totalmente a intenção do cineasta, ou ainda do filme em que esta participando, e portanto a câmera registrar momentos ‘íntimos’ desse pequeno ser, deve ser tratado de forma cuidadosa. A maioria dos contextos das cenas representadas por crianças são ignorados por esta ultima, essa particularidade demonstra a manipulação que, muita das vezes, o cineasta exerce sob a criança, assim como exerce ao filma-la em um momento ‘intimo’. [nota de rodapé2]
No terceiro take, para evitar o constrangimento de estar filmando um momento particular, pedi para que a garota de dez anos fechasse os olhos e se entregasse a conversa, fazendo o possível para não notar a minha câmera parada em frente a ela. Pedi para que ela se imaginasse sozinha naquele quarto, que tornasse aquela conversa apenas dela e Deus, como se a terceira pessoa ali existente (no caso eu) não estivesse ali, e que desse mais tempo para a conversa se concluir também. 
Milena fechou os olhos, e ainda na mesma estrutura corporal da primeira cena, começou a ação pedida. Depois da pequena conversa que tivemos sobre a câmera “não estar” ali, sua atuação foi bem melhor e pude, através das falas e da movimentação das sombrancelhas, observar mais uma semelhança que as crianças tendem a pegar, mesmo que inconscientemente, dos adultos. A criança em questão frequenta, semanalmente, uma igreja evangélica e portanto essa característica de sua vida pessoal era nítida em sua cena. Pude perceber, na forma em que ela repetia “E que o senhor venha tocar na minha casa, na minha vida, derramar sangue e poder, senhor” que as palavras pronunciadas, vinham claramente de um adulto ao qual ela se espelha na forma de rezar e não no modo em que uma criança, que não frequenta ambientes religiosos, rezaria. Acredito que a mimese da criança em relação ao adulto se torna ainda mais presente ao observarmos essas determinadas ações. 
Bernardo fora a segunda criança a realizar o exercício. A ele eu dei um livro grande, pedi para que, ao invés de ler a história que ali estava, ele apenas imaginasse o que estaria escrito e contasse para mim, em forma de história, tentando assim me convencer de que ele estava lendo, mesmo sem realmente fazê-lo. 
Devo confessar que me impressionei com a cena proposta pelo garoto de cinco anos. Através de algumas imagens do livro, ele conseguiu montar uma história totalmente convincente e diferente, não desviando o olhar das linhas presentes na página, ainda que não estivesse lendo. Essa concentração exagerada logo no primeiro take me fez pensar, mais uma vez, como crianças mais nova não se importam com a imagem que passam para a câmera, não necessitando de uma construção corporal nem gestual, visto que “ser eles mesmos” já basta. 
A terceira criança a realizar o exercício foi Gabriela (09 anos), e pedi que conversasse com seu bichinho de pelúcia sobre o emprego de sua mãe, levando em consideração que ela não sabia exatamente o que sua mãe fazia, e portando deveria usar a sua imaginação para desenvolver um monologo que se enquadraria o ato de vender alguma coisa. Realizei algumas diversas tentativas até chegar a conclusão que não conseguiria sair com um resultado positivo daquela ação, acredito que a criatividade, embora seja característica na maioria das crianças, não esteja presente em todas as situações, visto que foi difícil tirar algo que fosse criado pela criança em questão. Gabriela só conseguia interpretar o que ela já havia presenciado, e portanto pedir que ela criasse um monologo de algo que sua mãe faz todos os dias não foi possível, justamente pelo fato dela não presenciar esse trabalho.
Para ter um resultado satisfatório durante a experiência com esta criança em particular, foi necessário mudar a abordagem e técnica e assim partir para a representação de algo que fosse parte do cotidiano da criança em questão e não de alguém próximo a ela. Pedi para que a garota escolhesse o seu urso de pelúcia favorito, para que ela tivesse a referência de algo que lhe fosse confortável e não enfrentasse as lentes da câmera sozinha. Dei a regra dela apenas encarar o bicho de pelúcia enquanto falava, virando-a de lado para que a câmera não fosse uma distração, e pedi em seguida que ela inventasse uma história para contar para seu objeto de conforto, podendo usar alguns elementos de uma história real. Ainda com o objeto para fazê-la se sentir mais confiante em frente as câmeras, o fato de estar sendo filmada a deixava totalmente desconfortável, a ponto de pedir por diversas vezes para que eu deixasse ela ensaiar antes de filma-la, com a desculpa de ‘não conseguir falar sem pensar’. 
Como técnica decidi permitir esse ensaio, ocultando o fato da câmera esta sendo filmada, justamente para tentar capturar a naturalidade que queria para a cena porém a necessidade da criança da aprovação do adulto que a filmava era tamanha que por diversas vezes a pegava olhando para a câmera a fim de observar a minha reação em relação a história dela. Tal ação foi observada também por Claire Simon, uma cineasta francesa responsável pela criação de “Récreations” (1992), um filme em que se infiltrava em uma escola maternal afim de observar e registrar cenas de crianças em um “ambiente” natural a elas. Claire relata, em uma entrevista para o programa “entretien avec l’auteur” realizada em Paris em Março de 2007, que as crianças buscavam, sobretudo, uma aprovação/reprovação vinda dela, exercendo grande parte das ações em função da câmera que os observavam. Uma situação parecida ao que aconteceu com a Gabriela, fez parte do processo de filmagem da cineasta em questão, ainda na mesma entrevista, Simon relatou que uma das crianças começou a cuspir no chão durante as filmagens, observando a reação dela em relação a sua ação em frente a câmera, e então ela relata que explicou a criança:

“Je ne voulais pas qu’ils regardent la caméra parce que ce n’était pas avec moi qu’ils jouaient mais entre eux, et que tant que le sang ne coulerait pas, je n’interviendrais pas. Je n’interviendrais qu’en danger de mort. Ils ont testé beaucoup ce truc lá. I’ll y en a un qui mangeait de la boue, je lui ai dit: “Oh, mais je ne t’arrête pas, tu sais tu n’es pas mort””. [Claire Simon entrevistada pelo produtor Richard Copans no DVD Récréations.] [nota de rodapé3]

Assim como a cineasta em questão, expliquei a Gabriela que não existia o certo e o errado, e que naquele momento ela não precisava da minha aprovação, e portanto só deveria contar ao urso de pelúcia o que quisesse que eu não iria intervir no ação, que tudo aquilo era uma criação dela e eu apenas iria registrar. 
Com o entendimento a ação a criança em questão decidiu contar uma história verídica  em que ela era a protagonista para o objeto de conforto, tendo um resultado satisfatório na cena, utilizando um intenso contato visual com o objeto e fazendo dele seu objeto de ligação com mundo exterior, afim de manter a naturalidade e ritmo da cena. 

[nota de rodapé1] Fraçois Dolto, La Cause des enfants, Paris, Robert Laffont, coll. Pocket 1995 pag. 139]
[nota de rodapé2] Por intimo quero retratar momentos em que as crianças vivem ‘com elas mesmo’, em seu mundo cotidiano. 
[nota de rodapé3]  “Eu não queria que olhassem para câmera porque não era comigo que eles estavam ‘jogando’ e si entre eles mesmo, e que enquanto não corresse sangue eu não interferiria. Eu só iria intervir em perigo de morte. Eles testaram bastante essa coisa. Teve um que comia lama e eu disse a ele: “Não pare não, você sabe.. você não esta morto” – tradução por mim [Claire Simon entrevistada pelo produtor Richard Copans no DVD Récréations.]