segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Prática I

A experiência prática começou pelo caminho inicial da história do cinema infantil. O trabalho realizado foi feita de forma separada, onde cada criança tinha um tempo “a sós” e portanto toda a atenção voltada só pra ela, afim de estabelecer uma conexão e uma concentração maior. 
O exercício realizado consistia em pensar em uma ação sem falas, ação essa que remetessem a criança o “universo adulto”. Ao escolher a ação, o indivíduo em questão deveria realiza-la de forma natural, como se aquilo fizesse parte do seu dia-a-dia, como se ele fosse o adulto. Essa representação seria realizada através da mimese, resgatada pela memória visual da criança, e também pela sua imaginação. 
A primeira criança, Milena (10 anos), escolheu a ação de escrever uma carta e deixei que ela se sentisse livre nesse primeiro momento para escrever e “interpretar” da forma que achava adequado, porém ao gritar “gravando” o aspecto corporal dela mudou totalmente, o “natural” se tornou mecânico/artificial e o sorriso forçado por esta “sendo filmada” não saiu do rosto. [inserir algum autor que fale sobre o assunto]
Ao perceber que a artificialidade da cena não iria parar pedi para que ela parasse a ação, expliquei a forma que ela estava agindo e mais uma vez reforcei a necessidade da naturalidade em cena, em seguida pedi para que ela fizesse a ação novamente, com a desculpa de “quero ver como você faz sem eu estar gravando”, mesmo estando com a câmera ligada para tentar capturar essa espontaneidade. Acredito que o que eu tenho exercido nesse momento fora um tipo de manipulação, visto que a criança em questão fora persuadida a acreditar que a câmera não estava funcionando para assim me “mostrar” como ela faria a ação no dia-a-dia. O resultado foi satisfatório, o sorriso e postura artificial desapareceram mas as “olhadas para pensar no que escrever” ainda continuavam presentes. Tentei por meio da voz de direção [nota de rodapé 1] fazê-la dar o tempo que a ação precisava, e não fazer só por fazer, e ainda assim as ‘olhadas’ não alcançaram o nível natural, sendo assim pedi que a escrita dela se baseasse na sua experiência pessoal (como por exemplo a forma que ela escreve na escola), não tendo uma distância tão grande assim com o personagem ‘adulto’ que ela havia escolhido, como propõe Stanislavski em: 
No trabalho o ator deve sempre começar de si mesmo, da própria qualidade natural, e então continuar de acordo com as leis da criatividade (…). A arte começa quando não existe papel, existe somente o “eu” em uma dada circunstância da peça (…). O ator realmente atua e vive seus próprios sentimentos: ele toca, cheira, ouve, vê com toda a fizesse de seu organismo, seus nervos; ele verdadeiramente atua com eles. [STANISLAVSKI apud BURNIER, 2009. p 95]
Ao relacionar a ação com algo do dia-a-dia da criança em questão, foi mais fácil fazê-la entender a naturalidade que eu estava querendo e portanto o resultado da cena em questão foi agradável. 
A segunda criança, Bernardo (5 anos), pensou em uma ação que ele via todos os dias, mas que, para ele, remetia a essência de ser adulto. O ato de trabalhar é bem comum quando se pede a uma criança para “representar” um adulto, e com esse garotinho não foi diferente. O trabalho escolhido foi martelar um prego em um pedaço de madeira. Acredito que a escolha dele se deu pela realidade que esta vivendo atualmente, visto que seu pai esta construindo uma casa e o garoto sempre frequenta essa construção presenciando o trabalho do pai. 
O interessante em filmar uma criança mais nova é que o “ar da câmera” não interfere em suas ações, elas ainda não se preocupam com a estética ou com parecer “bem” e portanto a naturalidade vem com mais facilidade do que com crianças mais velhas assim como com adultos como afirma Claire Simon [nota de rodapé 2] em uma entrevista em Paris, em 2007 “A diferença entre as crianças e os adultos, é que as crianças são menos narcisistas. O jogo interessa mais a elas do que sua própria imagem.” [nota de rodapé 3]
Bernardo arrumou o ‘cenário’ por ele mesmo, pegando tudo que ele achava que precisava para realizar a mimese de seu pai. Ele iniciou a ação com um rosto concentrado, acostumando-se com o peso do martelo em suas mãos, era a primeira vez que alguém o deixava realmente ‘manusear’ o instrumento de trabalho e acredito que isso tenha dado uma visão ainda mais natural a cena. 
Como suas mãos são pequenas e a força não é tão grande em uma criança de cinco anos, o trabalho acabou se tornando cômico, trazendo assim uma frustração para a criança em questão. Ao tentar martelar por diversas vezes o mesmo prego, e este ultimo nunca se fixar na madeira, a raiva por não conseguir, começou a aparecer e as expressões naturais de frustração ficaram interessantes no enquadramento da câmera. Por enfatizar que o exercício deveria ser realizado sem fala, essa expressividade facial cresceu ainda mais, dando a captura de cena um aspecto cômico notável. Acredito que o cinema mudo com crianças tenha usado desse método “representação de um adulto em atividades que crianças não conseguem realizar” para retirar de seus atores mirins aquele excesso de expressividade característico desse gênero cinematográfico, pois foi notável com esse exercício que crianças menores tem expressões fortes naturalmente e se frustram rápido por não conseguir algo. 
Com o passar da cena e ao se acostumar com o peso/textura do objeto, tornou-se mais fácil manusea-lo e dando assim um desfecho a cena. Porém a força que o garoto de cinco anos usou durante o processo de filmagem, demonstrou, mais uma vez, a grande expressividade que as crianças tendem a ter quando exploradas dessa maneira. 
A terceira criança a participar do experimento foi a Gabriela de nove anos. Expliquei pra ela o objetivo do exercício e pedi para que pensasse na ação que para ela remetesse o mundo adulto. Depois de muito pensar e sugerir várias possíveis ações, a menina escolheu uma atividade que é realizada por sua tia todas as semanas: o ato de tocar violão. Acredito que as ações escolhidas pelas crianças vem muito da realidade que elas vivem, assim como a escolha feita por Bernardo, Gabriela escolheu uma ação que ela vê no dia-a-dia, visto que sua tia é uma aspirante a cantora e por isso esta sempre a tocar violão próxima a ela. 
A menina arrumou a cena sozinha, pegou o instrumento e o livro de partituras da tia, e iniciou a leitura das notas, mesmo não sabendo realmente como toca-las. O que me deixou impressionada nessa cena foi a capacidade dela se concentrar em determinados momentos e “esquecer” a minha presença e da câmera enquanto lia as notas e tentava encaixar os dedos nos acordes. Porém a concentração não era de um todo, assim que ela ficava de certa forma frustrada ou ‘entediada’ com a ação escolhida, o olhar dela vagava para câmera, para mim, ou para outras pessoas que estavam no ambiente de filmagem. 
Ao final da cena, quando a frustração por não conseguir tocar o que havia sugerido se tornou grande e a concentração foi embora, Gabriela tocou acordes simples que havia aprendido, mas como esquecera grande parte deles a comicidade da cena ainda era permanente. 
[nota de rodapé 1]  O diretor vai narrando ao ator as ações que quer que ele reproduza. 
[nota de rodapé 2] Claire Simon, apesar de nascida em Londres, é uma cenógrafa, atriz, diretora de fotografia e realizadora no cenário cinematográfico francês, sendo diretora de inúmeros documentários que abordam a infância como temática principal. 
[nota de rodapé 3] “La différence entre les enfants et les adultes, c;est que les enfants son moins narcissiques. Le jeu les intéresse plus que leur propre image.” [SIMON, Claire in LIVENCCHI, Nicolas. L’enfant Acteur: De François Truffaut a Steven Spielberg et Jacques Doillon. Paris, 2012. Pag 96.]

terça-feira, 15 de setembro de 2015

História do Cinema IV

Na década de 70 os filmes destaques se caracterizavam pelo chamado road-movie que consistia em filmes que se desenrolavam através de uma viagem em que os personagens participavam. A inspiração principal para esse gênero cinematográfico foi a película Lolita de Stanley Kubrick em 1962, onde nasce o interesse de ligação amorosa entre o adulto e a criança, ainda que Lolita seja interpretada por uma jovem adolescente. Os filmes do gênero road-movie que utilizavam crianças, ligavam-nas apenas com adultos do sexo masculino, justamente para que o espectador tenha essa visão de “relacionamento”, ainda que não propriamente amoroso, entre o adulto e a criança. Alice in den Stadten (Alice na cidade) de Wim Wenders – 1973 – é um dos primeiros filmes a expor essa relação, seguido por Paper Moon de Peter Bogdanovich no mesmo ano. O filme de Bogdanovich retrata a história de uma garotinha que após a morte da sua mãe é deixada sob cuidados de um estranho que tem como função leva-la para casa de seus tios. Durante toda viagem podemos observar aspectos na atuação da jovem atriz que de fato retrata a ligação de seu personagem com uma figura adulta, como o fato da criança de nove anos fumar sempre que esta nos quartos de hotel ou no carro, ou, ainda mais concretamente, o fato da menina sempre querer imitar os trejeitos da mãe, talvez para impressionar o seu ‘amigo’ adulto. O filme trás essas questões de forma sutil, porem é perceptível a tentativa de fazer a criança se parecer com um adulto, a ligação entre a criança e o adulto é feita de forma platônica nessas duas produções principais, dando lugar a um olhar mais paternal do que de sedução, embora essa ultima sempre esteja presente. 
A história complexa de sedução entre o adulto e a criança perde espaço na história do cinema, porém o estilo road-movie continua a crescer e a explorar o fantástico mundo de viagens entre um adulto e uma criança. Um exemplo atual de road-movie em que temos uma criança como protagonista e que o aspecto sedução não seja o foco do enredo é Little Miss Sunshine de Jonathan Dayton e Valerie Faris de 2006, onde é relatado a história da criança que insiste para que sua família parte em uma viagem para que assim ela possa participar de um concurso de beleza infantil. A necessidade de relatar as relações familiares, como em Little Miss Sunshine, vem de uma segunda fase do road-movie, onde Win Wenders, com Paris, Texas (1984) sentiu a necessidade de mudar o foco do gênero cinematográfico. O diretor inspirou com essa nova “visão” do road-movie diversos outros diretores a se inspirarem nessa mesma base e não foi diferente para Doillon e Spielberg que dirigiram La Vie de famille e War of the Worlds respectivemente, seguindo essa mesma lógica.
Essa intensificação das relações entre crianças e adultos no meio da road-movie, segundo Nicholas Livecchi, significa: 

“d’un point de vue narratif se répercute a l’évidence sur le jeu des comédiens: l’enfant, contrait de partager avec l’adulte a la fois l’espace et le cadre. Ainsi stimulé, le jeune acteur offre des performances étonnantes, souvent bien plus marquantes que lorsqu’il évolue dans un univers exclusivement enfantin.” 
[LIVENCCHI, Nicolas. L'enfant Acteur: de François Truffault a Steven Spielberg et Jacques Doillon. 2012, France. Pag 40] [nota de rodapé 1]

Sendo assim a divisão de tela e de papeis entre a criança e o adulto, embora seja um formula bastante conhecida no universo cinematográfico, traz nesse período histórico um beneficio maior acerca do papel da criança no cinema. Pois é a partir desse período que os papeis começam a ser mais enigmáticos e que a criança é pressionada a ser mais do que apenas uma criança em cena. 
Um outro gênero cinematográfico que marcou a atuação das crianças na história do cinema foi a face sombria infantil. A criança com seu olhar inocente trazia consigo um medo desconhecido do “rosto de anjo e alma demoníaca” que cineastas exploravam muito no decorrer dos anos 60. O inglês Alexander Mackendrick foi o primeiro a explorar de modo sistemático essa parte sombria sobre a infância, assim em seu filme A High Wind in Jamaica (1965), Mackendrick conta a história de sete crianças que se encontram presas em um navio pirata e enfatiza a natureza sádica e mórbida das crianças, como afirma Livencchi em sua obra [nota de rodapé 2]. Na película de Mackendreick é notável as implicações sexuais entre a criança de dez anos e o pirata adulto em cena, sinal claro dessa fase sombria que envolve a criança em filmes do gênero. Uma cena que retrata bem esse aspecto perturbador acerca do universo infantil é quando o capitão do navio se encontra em alto mar, e então ao voltar para sua navegação, encontra duas das crianças com uma bíblia na mão, velando uma terceira menina que se faz de morta. O personagem adulto se assusta com a cena e levanta a criança, mais velha, que se faz de morta, e ela com um olhar sedutor enquadrado pela câmera para que esse aspecto seja justamente notável, encara o pirata dando uma espécie de erotismo a cena em questão. O filme faz um crescente de jogos entre os personagens adultos e infantis, até que o espectador perceba que todos as brincadeiras, são na verdade “realidades” que se passam nas cenas. 

Nessa visão, os cineastas (em sua grande maioria ingleses) chegaram a conclusão de que as crianças em grupo formam uma comunidade tão violenta quanto a dos adultos, e com essa conclusão, são inúmeros os filmes feitos com a temática sombria acerca da imagem infantil, até a chegada dos filmes de terror onde a “imagem do mal” estava ligada a criança, como no filme de Wolf Rilla (1960), Village of the Damned onde todas as mulheres de uma cidade ficam grávidas ao mesmo tempo e dão a luz, também ao mesmo tempo, a crianças que irão se provar perigosas e cruéis. Nessa temática, como afirma Livencchi “l’enfant, naguére figure innocente, cache desornais sous une envelope angélique une seconde nature bien plus terrifiante” [nota de rodapé 3]

Nos anos 80, a aposta cinematográfica acerca do universo infantil foi grande, prova disso foi o maior sucesso mundial de 1982, onde Spielberg conta a história de um menino autista no filme E.T.  O surgimento dos novos babies-stars também contribui para esse crescimento do interesse no universo infantil, e atores como Macaulay Culkin ganham destaques mundiais. O sucesso dos filmes dos anos 80 que detêm uma criança como seu principal protagonista não trazem o retorno esperado, como o caso da produção dos estúdio Disney “Honey, I Shrunk the Kids”. Somente com a chegada de Harry Potter (2001) é que os cineastas atuais conseguem seguir o legado que Spielberg e Doillon deixaram desde o início dos anos 80. 
A partir dos anos 2000, com os filmes detendo a criança em um papel principal porém com temáticas voltadas para adultos, se tornou quase impossível filmar uma criança sem que o espectador lance um olhar crítico ao papel desenvolvido, pois como afirma François Truffaut: 

“En ce qui concerne les interprètes enfants, je crois qu’il faut absolument éviter les petites filles entre cinq et douze ans. A cet âge-la, les filles font du charme, cherchent a séduire, ne disent pas une phrase sincère, parlent faux exprès et jouent Manon [nota de rodapé4] dans la vie” 
[TRAUFFAULT, François in ALTMAN, Carol. Enfance.. inspiration littéraire et cinématographique. Summa, 2006. Paris. Pag.239][nota de rodapé5]


Ou seja, a crítica em relação a inocência da criança ainda existe, e esta cada vez mais sendo questionada nas produções cinematográficas atuais. Porém, o que é inquestionável é a evolução infantil acerca aos métodos de atuação desde o início da história do cinema. O jogo que hoje desenvolvem é bem elaborado, convincente e natural demonstrando assim uma evolução de seus gestos e personalidades, se imponto assim como um real artista a ser respeitado e não somente um objeto de manipulação de cena. É por esse motivo que as crianças artistas vem, cada vez mais, chamando atenção dos cineastas. 

[nota de rodapé 1]De um ponto de vista narrativo se repercuta sobre a evidencia do jogo dos comediantes: a criança, tende a dividir com o adulto o espaço e o quadro. Sendo estimulada, o jovem ator oferece performances inacreditáveis, muitas das vezes mais marcantes que quando ele evolui exclusivamente em um universo infantil – tradução por mim
[nota de rodapé 2]LIVENCCHI, Nicolas. L'enfant Acteur: de François Truffault a Steven Spielberg et Jacques Doillon. 2012, France.
[nota de rodapé 3] “A criança, notável figura inocente, esconde sobre um aspecto angélica uma segunda natureza muito mais terrível.” LIVENCCHI, Nicolas. L'enfant Acteur: de François Truffault a Steven Spielberg et Jacques Doillon. 2012, France. Pag 42 – tradução por mim. 
[nota de rodapé 4] A expressão “jouent Manon” significa o ato de ‘dar esporro’, gritar ou querer mandar em alguém.
[nota de rodapé 5] “Ao que consiste no interprete infantil, eu acho que deveriam absolutamente evitar meninas de cinco aos doze anos. Nessa idade, as meninas fazem charme, procuram seduzir e não dizem sequer uma frase sincera, falam errado de propósito e brincam de ser Manon na vida.” – tradução por mim.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

História da criança no cinema III.

Enfim, o período de 30-40 foi marcado pelas expressões exageradas e atitudes tanto estereotipadas quanto fictícias ao contrário dos anos que se seguiram que com o surgimento de novos métodos de jogo inovadores na nova Hollywood, beneficiarão os jovens atores do período que serão afrontados a papeis cada vez mais complexos trazendo assim ambiguidade a imagem da criança. É nessa “nova Hollywood’ que as crianças passam a desenvolver papeis em que sua imagem esta ligada a algo perverso, como em The night of the hunter de Charles Laughton em 1955 onde o diretor confronta o mundo da infância com o mal absoluto. 
Depois da década de 40, a infância sofre uma tremenda mutação com a mudança do neo-realismo e no cenário cinematográfico as preferências para artistas amadores crescem, e estes mesmo passam a substituir a escolha clássica por atores profissionais. Outro ponto que muda no cinema em 1948 é o fato da criança voltar a ser “somente” um rosto no cinema, e não dar lugar para que ela realmente atue ou entre no jogo que a película cinematográfica propõe. Rossellini (cineasta italiano, é um dos primeiros a aderir essa técnica) diz, em 1948 com a montagem de “Germania ano zero”, que a expressão de brincadeira, assim como a expressão da morte pode significar a mesma coisa no rosto de uma criança e portanto é importante o olhar que esta criança lança a câmera. Rossellini é o primeiro cineasta a confrontar a infância com o mundo em guerras, passada a segunda guerra mundial, é indiscutível o papel que cada criança exerceu e viveu durante todo o período de confrontação, e portanto os filmes abordando essa temática fizeram grande sucesso. Schindler’s list [nota de rodapé1], de Spielberg, foi um dos filmes mais marcantes durante todo esse período, e pelo destaque dado a garotinha da capa vermelha no final do filme, percebe-se que o cineasta começa a se interessar nesse momento pelo papel da criança no cenário cinematográfico. 
Durante esse período, uma formula que já faz parte da história da criança no cinema volta a se fazer presente, e a dupla “criança x adulto” passa a ser, mais uma vez, o método explorados pelos diretores da época. A diferença é que durante o período neo-realista, a criança no cinema passa a ter o papel de ator-observador, onde as ações principais são desenvolvidas pelos adultos, e as crianças só tendem a reagir ao que acontece. Essa transformação do “ator testemunha/observador” pode ser bem observado no filme Fanny e Alexander de Bergman (1982) onde após a morte do pai, as crianças são obrigadas a deixar a casa da avó paterna para viver com o novo marido da mãe, sendo assim são sempre testemunhas das ações que as cercam, não expressando emoções básicas em nenhuma situação, nem mesmo com o enterro do pai. É uma característica marcante a falta de expressividade no rosto das crianças, faz com que o telespectador projete o sentimento que ele quer que a personagem sinta naquele momento, fazendo-o assim se identificar ainda mais com a película em questão. 
Um segundo filme de extrema importância para o período neo-realista é Belíssima, dirigido por Luchino Visconti em 1951, que retrata grande parte da caminha da criança no universo cinematográfico. Belíssima conta a história de uma atriz frustrada, que põe toda a sua esperança em sua filha, e portanto faz com que a pequena criança inicie sua carreira artística ainda pequena. O filme, como retrata Livencchi em sua obra, traz questões importantes acerca o papel da criança no cinema, tais quais: Com que idade a criança, por vontade própria, pode começar a atuar? Até que idade a “atuação” é uma vontade inteiramente dos pais? esses são os debates que rodeiam a história de Belíssima. Visconti, durante a filmagem utilizou de métodos reais da vida da criança em questão para fazer a pequena atriz parecer o mais natural possível em cena. Uma cena que explica bem essa relação com a realidade da criança é o momento em que uma antiga e velha atriz vai até a casa da jovem menina para lhe ensinar alguns truques. A atriz começa a explicar para criança as fases que ela deve seguir, quando se trata de um roteiro, tendo primeiro que identificar a situação, em seguida vem a imaginação da cena em questão, saber “enxergar” a identificação anterior, por fim vem a atuação dentro da imaginação onde a criança artista deva enxergar “na realidade” tudo aquilo que está em sua imaginação. 
É muito importante que a criança artista, durante esse período de tempo, se identifique com seu personagem, e entenda o papel que esta representando, e Visconti sabe bem como usar desse método em questão, ele faz a criança representar longos planos seguidos, tornando seus gestos infantis naturais condicentes com a de sua personagem e fazendo a pequena atriz acreditar nas cenas que estava vivendo para que assim ela pudesse facilmente entrar no “jogo” proposto. Acerca desse pensamento, Visconti relata que: 

“Une scène ou elle (Tina Apicella) devais pleurer: elle était calme, tranquille jusqu’au bout de l’action. A peine on faisait le clip, elle commençait a pleurer. Elle s’arrêtait au “stop”. Et cela dix, quinze foi de suite. Une enfant de cinq ans et demi” [SANZIO Alain. Visconti cinéaste, Persona/Ramsay. 1986. page 105] [nota de rodapé 2]


A criança quando entende o “jogo” que deve jogar entra mais facilmente nas regras propostas pelo diretor, e foi certemente compreendendo esse mecanismo de regras que a atriz mirim conseguiu retratar bem as questões que envolvem as crianças acerca do universo cinematográfico. Em um outro ponto de vista, esse método de “fazer acreditar no faz de conta” traz a tona uma das problemáticas chaves que envolve o papel da criança no cinema, sendo a duvida sobre a criança realmente crer no que interpreta, estabelecendo uma analogia entre o jogo de ser ator e o jogo de ser criança e “viver no mundo da imaginação”.

nota de rodapé 1: O filme é uma versão cinematográfica preto branca, porém, a pequena garota que aparece durante a película esta usando uma capa vermelha, apenas ela em meio a imensidão preto e branca. Esse destaque é um dos fatores mais marcantes do filme. 
nota de rodapé: “Uma cena em que ela (Tina Apicella) tinha que chorar: ela estava calma e tranquila até o começo a ação. Apenas que começávamos a filmar ela começava a chorar e parava no “Stop”. E isso umas dez ou quinze vezes seguidas. Uma criança de cinco anos e meio.” – tradução por mim

terça-feira, 8 de setembro de 2015

História da criança no cinema II.

Os anos de 30 e 40 foram marcados pela expansão dos anos de ouro do cinema Hollywoodiano. Apôs a crise econômica de 29 o cinema de entretenimento ganha uma grande notoriedade no cenário internacional e a criança passa, com a criação dos “Babies-stars” a ser a grande ideia dos cineastas para preencher um mundo que precisa de entretenimento. O primeiro diretor a se utilizar dos pequenos “Babies-stars” é o chamado King Vidor que em seu filme The Champ (1931) aproveita da liberdade que o audio [nota de rodapé 1] trás e deixa que seu ator mirim principal, Jackie Cooper, se aventure entre falas em canções em cenas “improvisadas”. Podemos claramente ver a improvisação do garoto em uma cena em que este pequeno ator esta sozinho em um telhado, buscando pequenas coisas (como chicletes e cigarros) que estão em latas. Durante toda a procura, o ator mirim cantarola uma música e solta frases soltas com “aaah, chicletes, vou pegar alguns” ou “eba, cigarros, tenho que levar alguns para o “Champ”’ antes de se virar para o telhado e andar por ele, ainda cantarolando sua música. É notável a atuação do pequeno ator, ele consegue, nesse início do cinema falado, sincronizar perfeitamente seus gestos e falas fazendo com que toda a sua encenação fosse convencível, sem “exagero” e também sem “inexpressividade”, porém podemos observar, no cinema dessa geração dos anos 30-40, a falta de sentimento que os jovens atores detinham em cena. Ainda no filme em que Jackie Cooper fora o protagonista, na cena em que o pai do garoto morre, o ator tenta por vários meios convencer os espectadores de que o sentimento de tristeza é real. Por diversas vezes ele chuta as paredes, dá socos nos muros, grita com os demais personagens, exagerando assim no aspecto “tristeza e revolta” de uma criança que perde o pai. Tais ações faz com que o espectador perceba que as lágrimas do ator são falsas, e que por mais que a situação do personagem implique tristeza, a criança artista não consegue realmente representa-la verdadeiramente.
A “babie-star” mais conhecida e também a figura mais emblemática para a criança no cinema até os dias de hoje é a pequena Shirley Temple. Com quatro anos de idade, a pequena atriz mirim atuou na série de pequenos filmes intitulado Baby Burlesks produzido por Jack Hays em 1932 e 1933. A série consistia em colocar crianças em situações semelhantes a de adultos, fazendo esses jovens atores realizar o que chamamos de mimesis [nota de rodapé 2], ou seja, a imitação de signos emitidos por adultos. A figura de Shirley Temple no contexto cinematográfico hollywoodiano é de fato complexo. A pequena atriz, aos quatro anos, já fazia papeis que beiravam a sedução extravagante de seu personagem e seus filmes seguintes só comprovavam tal imagem, deixando assim uma legião de fãs em sua grande maioria homens adultos. Shirley foi um dos únicos grandes fenômenos infantis cinematográficos até hoje e tal fato é consequência da imagem e do trabalho que os cineastas que a filmaram quiseram “impor” a ela, transformando essa pequena menina em um ícone singular que varia da pequena garota exemplar e de uma personagem extremamente ambígua que brinca com os códigos de sedução, como afirma Nicolas Livencchi em sua obra L’enfant Acteur. 

D’un point de vue de mise en scène, cette idée se traduit essentiellement par un procédé omniprésent dans tous se films: Le renversement des codes. Au départ utilisé comme simple procédé comique dans des courts métrages  qui proposaient des histoires adultes interprétées par des enfants âgés d’á peine cinq ans, le renversement se fait plus subtil dans les autres films avec Shirley Temple, même s’il est toujours source d’un décalage humoristique. [LIVENCCHI, Nicolas. L'enfant Acteur: de François Truffault a Steven Spielberg et Jacques Doillon. 2012, France. Pag 23][nota de rodapé 3]

Na grande maioria dos filmes interpretados pela jovem atriz, a criança é totalmente colocada em igualdade com o adulto e este ultimo, muitas das vezes é infantilizado. Essa forma de atuação foi e ainda é utilizada por alguns cineastras no cenário internacional, um exemplo clássico de infantilização do adulto em igualdade com a criança esta no filme Home Alone (esqueceram de mim) de Chris Columbus em 1997 onde os ladrões que invadem a casa do garoto representado por Macaulay Culkin são totalmente infantilizados. 
Ainda na representação de Shirley Temple e método de atuação exigida pelos seus diretores, a emoção acerca do choro e da tristeza não é explorada de forma convincente em nenhum momento. Nos seus filmes mais marcantes quando criança, a atriz não derrama nenhuma lágrima quando tem de fazer seus papeis e todos os seus sentimentos são claramente exagerados e mentirosos, ainda que a atriz saiba muito bem usar suas expressões e gestos para apoiar o seu jogo de atuação.
Enfim, o período de 30-40 foi marcado pelas expressões exageradas e atitudes tanto estereotipadas quanto fictícias ao contrário dos anos que se seguiram que com o surgimento de novos métodos de jogo inovadores na nova Hollywood, beneficiarão os jovens atores do período que serão afrontados a papeis cada vez mais complexos trazendo assim ambiguidade a imagem da criança. É nessa “nova Hollywood’ que as crianças passam a desenvolver papeis em que sua imagem esta ligada a algo perverso, como em The night of the hunter de Charles Laughton em 1955 onde o diretor confronta o mundo da infancia com o mal absoluto. 

nota de rodapé –  A era do som no cinema foi introduzida pelo estúdio Warner Brothers em 1927, onde um dispositivo chamado Vitaphone foi lançado. Esse dispositivo permitia pequenos diálogos nos filmes, e o primeiro a se utilizar dele foi um musical intitulado The Jazz Singer. O primeiro filme totalmente sonorizado e sincronizado surgiu em 1928, também uma produção da Warner Brothers e a partir de 29 todos os filmes surgidos em Hollywood já se aventuravam na era sonora. 
nota de rodapé 2 – Surgido com Aristoteles e Platão, o termo mimesis constitui na imitação de algo ou alguém. A diferença básica entre um pensador e outro é que Platão dizia que a mimese estava em tudo, inclusive na criação do mundo, e portanto a representação artística seria uma segunda imitação do mundo, enquanto que para Aristoteles o drama (ou a representação) é a imitação de uma ação, ou seja, a arte seria a representação do mundo como um todo. SUSIN, André Luís. Mimesis e tragédia em Platão e Aristóteles. UFRS. Porto Alegre, 2010. 
nota de rodapé 3 –  No ponto de vista da atuação em cena, essa ideia se traduz essencialmente por um processo onipresente em todos os seus filmes: A reversão do código. No inicio utilizado como um simples processo cômico nos curtas metragens que propunha histórias adultas interpretadas por crianças de apenas cinco anos, a reversão se faz ainda mais presente nos outros filmes com Shirley Temple, mesmo sendo sempre acompanhado de um toque humorístico. – tradução por mim.